O VENDEDOR DE SONHOS
Dedico este romance aos queridos leitores de todos os países onde meus livros têm sido
publicados. Em especial aos que de alguma forma vendem sonhos por meio da sua inteligência,
crítica, sensibilidade, generosidade, amabilidade. Os vendedores de sonhos são freqüentemente
estranhos no ninho social. São anormais. Pois o normal é chafurdar na lama do individualismo, do
egocentrismo, do personalismo. O seu legado será inesquecível.
Prefácio
Este é meu quarto livro de ficção e meu vigésimo segundo livro. Meus romances, como O
futuro da humanidade e A dita- dura da beleza, não objetivam criar tramas que apenas entretêm,
divertem, excitam a emoção. Todos eles envolvem teses psico- lógicas, psiquiátricas, sociológicas
e filosóficas. Têm a intenção de provocar o debate, viajar no mundo das idéias e ultrapassar as
fronteiras do preconceito.
Escrevo continuamente há mais de vinte e cinco anos e publico há pouco mais de oito
anos. Tenho mais de 3 mil páginas ainda inéditas, não publicadas. Muitos não entendem por que
meus livros são tão procurados, já que não tenho atração por propagandas e, dentro do possível,
possuo uma vida social um tanto reclusa. Talvez seja- por causa das viagens pelo território do
insondável mundo da mente humana. Sinceramente, não mereço esse sucesso. Não sou um autor
capaz de produzir textos com agilidade. Sou, sim, um escritor determinado. Costumo brincar que
sou um grande teimoso. Procuro ser um artesão das palavras. Escrevo e reescrevo continuamente
cada parágrafo, dia e noite, como se fosse um escultor compulsivo. Você vai ver neste romance
diversos pensamentos que foram esculpidos depois de terem sido reescritos, forjados em minha
psique dez ou vinte vezes.
Há livros que saem do cerne do intelecto; outros saem das entranhas da emoção. O
vendedor de sonhos saiu dos recônditos desses dois espaços. Há muitos anos o venho elaborando,
até que chegou o momento de escrevê-lo. Enquanto o escrevia, fui bombardeado com inumeráveis
questionamentos, sorri muito e ao mesmo tempo repensei nossas loucuras, pelo menos as minhas.
Este romance passeia pelos vales do drama e da sátira, pela tragédia dos que perderam e pela
ingenuidade dos que fizeram da existência o picadeiro de um circo.
O personagem principal é dotado de uma ousadia sem precedente. Ele esconde muitos
segredos. Nada, ninguém consegue controlar seus gestos e palavras, a não ser sua própria
consciência. Sai bradando aos quatro ventos que as sociedades
modernas se tornaram um grande manicômio global, onde o normal é ser ansioso, estressado, e o
anormal é ser saudável, tranqüilo, sereno. Ele instiga a mente de todos os que passam por ele, seja
nas ruas, nas empresas, nos shoppings, nas escolas, com o método socrático. Torpedeia as pessoas
com inumeráveis perguntas.
Sonho que este livro possa ser lido não apenas pelos adultos, mas também pelos jovens,
pois penso que muitos deles estão se tornando servos passivos do sistema social. Não são
arrebatados pelos sonhos e pelas aventuras. Tornaram-se, apesar das exceções, consumidores de
produtos e serviços e não de idéias. Entretanto, consciente ou inconscientemente, todos querem
uma vida regada a emoções borbulhantes, até bebês
quando se arriscam a sair do berço. Mas onde encontrá-las em abundância? Em que espaço da
sociedade tais emoções se encontram? Alguns pagam muito dinheiro para consegui-las, mas
vivem angustiados. Outros se desesperam em busca de fama e reputação, mas morrem entediados.
Outros ainda escalam íngremes montanhas para ter algumas doses de aventura, mas elas se
dissipam no calor do dia seguinte. Na contramão da massacrante rotina social estão os
personagens deste romance. Eles viverão altas doses de adrenalina diariamente. Entretanto, o
"negócio" de vender sonhos tem um alto preço. Por isso, riscos e vendavais os acompanharão.
O encontro
No mais inspirador dos dias, sexta-feira, cinco da tarde, pessoas apressadas — como de
costume — paravam e se aglomeravam num entroncamento central da grande metrópole. Olhavam
para o alto, aflitas, no cruzamento da Rua América com a Avenida Europa. O som estridente de
um carro de bombeiros invadia os cérebros, anunciando perigo. Uma ambulância procurava furar
o trânsito engarrafado para se aproximar do local.
Os bombeiros chegaram com rapidez e isolaram a área, impedindo os espectadores de se
aproximar do imponente Edifício San Pablo, pertencente ao grupo Alfa, um dos maiores
conglomerados empresariais do mundo. Os cidadãos se entreolhavam, e os transeuntes que
chegavam pouco a pouco traziam no semblante uma interrogação. O que estaria acontecendo? Que
movimento era aquele? As pessoas apontavam para o alto. No vigésimo andar, num parapeito do
belo edifício de vidro espelhado, debruçava-se um suicida.
Mais um ser humano queria abreviar a já brevíssima existência. Mais uma pessoa
planejava desistir de viver. Era um tempo saturado de tristeza. Morriam mais pessoas
interrompendo a própria vida do que nas guerras e nos homicídios. Os números deixavam atônitos
os que refletiam sobre eles. A experiência do prazer havia se tornado larga como um oceano, mas
tão rasa quanto um espelho d’água. Muitos privilegiados financeira e intelectualmente viviam
vazios, entediados, ilhados em seu mundo. O sistema social assolava não apenas os miseráveis,
mas também os abastados.
O suicida do San Pablo era um homem de quarenta anos, face bem torneada, sobrancelhas
fortes, pele de poucas rugas, cabelos grisalhos semilongos e bem-tratados. Sua erudição, esculpida
por muitos anos de instrução, agora se resumia a pó. Das cinco línguas que falava, nenhuma lhe
fora útil para falar consigo mesmo; nenhuma lhe dera condições de compreender o idioma de seus
fantasmas interiores. Fora asfixiado por uma crise depressiva. Vivia sem sentido. Nada o
encantava.
Naquele momento, apenas o último instante parecia atraílo. Esse fenômeno monstruoso
que costumam chamar de morte parecia tão aterrador... mas era, também, uma solução mágica
para aliviar os transtornos humanos. Nada parecia demover aquele homem da idéia de acabar com
a própria vida. Ele olhou para cima, como se quisesse se redimir do seu último ato, olhou para
baixo e deu dois passos apressados, sem se importar em despencar. A multidão sussurrou de
pavor, pensando que ele saltaria.
Alguns observadores mordiam os dedos em grande tensão. Outros nem piscavam os olhos,
para não perder detalhes da cena — o ser humano detesta a dor, mas tem uma fortíssima atração
por ela; rejeita os acidentes, as mazelas e misérias, mas eles seduzem sua retina. O desfecho
daquele ato traria angústia e insônia aos espectadores, mas eles resistiam a abandonar a cena de
terror. Em contraste com a platéia ansiosa, os motoristas parados no trânsito estavam impacientes,
buzinavam sem parar. Alguns colocavam a cabeça janela afora e vociferavam: ”Pula logo e acaba
com esse show!”.
Os bombeiros e o chefe de polícia subiram até o topo do edifício para tentar dissuadir o
suicida. Não tiveram êxito. Diante do fracasso, um renomado psiquiatra foi chamado às pressas
para realizar a empreitada. O médico tentou conquistar a confiança do homem, estimulou-o a
pensar nas conseqüências daquele ato... mas nada. O suicida estava farto de técnicas, já havia feito
quatro tratamentos psiquiátricos malsucedidos. Aos berros, ameaçava: ”Mais um passo e eu
pulo!”. Tinha uma única certeza, ”a morte o silenciaria”, pelo menos acreditava que sim. Sua
decisão estava tomada, com ou sem platéia. Sua mente se fixava em suas frustrações, remoía suas
mazelas, alimentava a fervura da sua angústia.
Enquanto se desenrolavam esses acontecimentos no alto do edifício, apareceu
sorrateiramente um homem no meio da multidão, pedindo passagem. Aparentemente era mais um
caminhante, só que malvestido. Trajava uma camisa azul de mangas compridas desbotada, com
algumas manchas pretas. E um blazer preto amassado. Não usava gravata. A calça preta também
estava amassada, parecia que não via água há uma semana. Cabelos grisalhos ao redor da orelha,
um pouco compridos e despenteados. Barba relativamente longa, sem cortar há algum tempo. Pele
seca e com rugas sobressaltadas no contorno dos olhos e nos vincos do rosto, evidenciando que às
vezes dormia ao relento. Tinha entre trinta e quarenta anos, mas aparentava mais idade. Não
expressava ser uma autoridade política nem espiritual, e muito menos intelectual. Sua figura
estava mais próxima de um desprivilegiado social do que de um ícone do sistema.
Sua aparência sem magnetismo contrastava com os movimentos delicados dos seus
gestos. Tocava suavemente os ombros das pessoas, abria um sorriso e passava por elas. As pessoas
não sabiam descrever a sensação que tinham ao ser tocadas por ele, mas eram estimuladas a abrir-
lhe espaço.
O caminhante aproximou-se do cordão de isolamento dos bombeiros. Foi impedido de
entrar. Mas, desrespeitando o bloqueio, fitou os olhos dos que o barravam e expressou
categoricamente:
— Eu preciso entrar. Ele está me esperando. — Os bombeiros o olharam de cima a baixo e
menearam a cabeça. Parecia mais alguém que precisava de assistência do que uma pessoa útil
numa situação tão tensa.
— Qual o seu nome? — indagaram sem pestanejar.
— Não importa neste momento! — respondeu firmemente o misterioso homem..
— Quem o chamou? — questionaram os bombeiros.
— Você saberá! E se demorarem me interrogando, terão de preparar mais um funeral —
disse, elevando os olhos.
Os bombeiros começaram a suar. Um tinha síndrome do pânico, outro era insone. A última
frase do misterioso homem os perturbou. Ousadamente ele passou por eles. Afinal de contas,
pensaram, ”talvez seja um psiquiatra excêntrico ou um parente do suicida”.
Chegando ao topo do edifício, foi barrado novamente. O chefe de polícia foi grosseiro.
— Parado aí. Você não devia estar aqui. — Disse que ele deveria descer imediatamente.
Mas o enigmático homem fitou-lhe os olhos e retrucou:
— Como não posso entrar, se fui chamado?
O chefe de polícia olhou para o psiquiatra, que olhou para o chefe dos bombeiros. Faziam
sinais um para o outro para saber quem o chamara. Bastaram alguns segundos de distração para
que o misterioso malvestido saísse da zona de segurança e se aproximasse perigosamente do
homem que estava próximo de seu último fôlego.
Quando o viram, não dava mais tempo para interrompê-lo. Qualquer advertência que
fizessem contra ele poderia desencadear o acidente, levando o suicida a executar sua intenção.
Tensos, preferiram aguardar o desenrolar dos fatos.
O homem chegou sem pedir licença e sem se perturbar com a possibilidade de o suicida se
atirar do edifício. Pegou-o de surpresa, ficando a três metros dele. Ao perceber o invasor, o outro
gritou imediatamente:
— Vá embora, senão vou me matar!
O forasteiro ficou indiferente a essa ameaça. Com a maior naturalidade do mundo, sentou-
se no parapeito do edifício, tirou um sanduíche do bolso do paletó e começou a comê-lo
prazerosamente. Entre uma mordida e outra, assoviava uma música, feliz da vida.
O suicida ficou abalado. Sentiu-se desprestigiado, afrontado, desrespeitado em seus
sentimentos.
Aos berros, clamou:
— Pare com essa música. Eu vou me jogar. Intrépido, o estranho homem reagiu:
— Você quer fazer o favor de não perturbar meu jantar?!
- disse com veemência. E deu mais umas boas mordidas, mexendo as pernas com prazer.
Em seguida, olhou para o suicida e fez um gesto, oferecendo-lhe um pedaço.
Ao ver esse gesto, o chefe de polícia tremulou os lábios, o psiquiatra estatelou os olhos e o
chefe dos bombeiros franziu a testa, perplexo.
O suicida ficou sem reação. Pensou consigo: ”Não é possível! Achei alguém mais maluco
do que eu”.
Ver alguém comer um sanduíche com eloqüente prazer diante de quem estava para se
matar era um cena surreal. Parecia extraída de um filme. O suicida fechou parcialmente os olhos,
aumentou um pouco a freqüência respiratória e contraiu ainda mais os músculos da face. Não
sabia se atirava, se gritava, se bronqueava com o estranho. Ofegante, bradou, altissonante:
— Se manda! Eu vou me atirar. — E ficou a um fio de cair. Parecia que dessa vez ele
realmente se esborracharia no chão. A multidão sussurrou, apavorada, e o chefe de polícia colocou
as mãos nos olhos para não ver a desgraça.
Todos esperavam que, para evitar o acidente, o estranho homem se retirasse imediatamente
de cena. Ele poderia dizer, como fizeram o psiquiatra e o policial: ”Não faça isso! Eu vou
embora”, ou dar um conselho do tipo: ”A vida é bela. Você pode superar seus problemas. Você
tem muitos anos pela frente”. Entretanto, num sobressalto, colocou-se rapidamente em pé e, para
assombro de todos e em especial do suicida, bradou um poema filosófico em voz alta. Declamava-
o para os céus e apontava as mãos na direção daquele que queria exterminar seu fôlego de vida:
— Seja anulado no parêntese do tempo o dia em que este homem nasceu!
Que na manhã desse dia seja dissipado o orvalho que
Umededa a relva!
Que seja retida a claridade da tarde que trouxe júbilo
aos caminhantes!
Que a noite em que este homem foi concebido seja
usurpada pela angústia!
Resgate-se dessa noite o brilho das estrelas que pontilhavam o céu!
Recolham-se da sua infância seus sorrisos e seus medos!
Anulem-se da sua meninice suas peripécias e suas aventuras!
Risquem-se da sua maturidade seus sonhos e pesadelos,
sua lucidez e suas loucuras!
Após ter recitado o poema a plenos pulmões, o estranho expressou um ar de tristeza e,
abaixando o tom de voz, disse o número um, sem dar qualquer explicação da contagem. A
multidão, atônita, perguntava-se se aquilo não era uma peça de teatro a céu aberto. Tampouco o
policial sabia como reagir: seria melhor intervir ou continuar acompanhando o desenrolar dos
fatos? O chefe dos bombeiros olhou para o psiquiatra, pedindo explicações. Confuso, ele disse:
— Não conheço nada na literatura sobre anular a existência, recolher sorrisos. Não entendo
de poesia... Deve ser mais um maluco!
O suicida ficou pasmado, quase em estado de choque. As palavras do forasteiro ecoaram
em sua mente sem que ele lhes desse permissão. Indignado, reagiu com violência:
— Quem é você para querer assassinar o meu passado?! Que direito tem de destruir minha
infância? Que ousadia é essa? — Após agredir o invasor com essas frases, caiu em si e pensou:
”Será que não sou eu o autor desse assassinato?”. Mas lutava para dissipar qualquer ponderação.
Vendo-o circunspecto, o misterioso homem teve o atrevimento de provocá-lo ainda mais:
— Cuidado! Pensar é perigoso, principalmente para quem quer morrer. Se quiser se matar,
não pense.
O suicida ficou embaraçado; fora fisgado pelo invasor. Pensou consigo: ”Esse sujeito está
me encorajando a morrer ou o quê? Será que estou diante de um sádico? Será que ele quer ver
sangue?”. Sacudiu a cabeça, como se assim pudesse interromper seus devaneios, mas os
pensamentos sempre traem os desejos impulsivos. Percebendo a confusão mental do suicida, o
estranho homem falou com suavidade, mas com não menos contundência:
— Não pense! Porque, se você pensar, vai perceber que quem se mata comete homicídios
múltiplos: mata primeiro a si, e depois, aos poucos, os que ficam. Se pensar, entenderá que a
culpa, os erros, as decepções e as desgraças são privilégios de uma vida consciente. A morte não
tem esses privilégios! — Em seguida, o forasteiro saiu do estado de segurança e passou para o de
angústia. Disse o número quatro e movimentou indignadamente a cabeça.
O suicida ficou paralisado. Queria rejeitar as idéias do forasteiro, mas elas pareciam um
vírus penetrando nos circuitos de sua mente. Que palavras eram aquelas? Perturbado e tentando
resistir às reflexões, enfrentou o forasteiro:
— Quem é você que, em vez de me poupar, me confronta? Por que não me trata como um
miserável doente mental, digno de pena? — e, aumentando o tom de voz, decretou: — Cai fora!
Sou um homem completamente acabado.
Em vez de se intimidar, o estranho homem perdeu a paciência e censurou seu interlocutor
perturbado:
— Quem disse que você é uma pessoa frágil ou um pobre deprimido que esgotou o prazer
de viver? Ou um desprivilegiado... um frustrado? Ou um moribundo que não consegue carregai o
peso das suas perdas? Para mim, você não é nada disso. Para mim, você é apenas um homem
orgulhoso, preso na sua gaiola emocional, alienado de misérias maiores que a sua.
O suicida colocou as duas mãos para trás e se afastou, assustado, da linha de tiro em que se
encontrava. Com raiva e a voz já embargada, indagou:
— Quem é você para me chamar de orgulhoso, um prisioneiro em minha gaiola
emocional? Quem é você para dizer que estou alienado de sofrimentos maiores que os meus?!
Ele sentia-se alvejado no peito, sem ar. O intruso acertara na mosca. Seus pensamentos
penetraram como um raio nos recônditos da sua psique. Naquele momento, o triste homem pensou
no pai, que lhe esmagara a infância, lhe causara muita dor. Seu pai emocionalmente distante,
alienado, enclausurado em si mesmo. Mas o suicida não tocava nesse assunto com ninguém; era-
lhe extremamente difícil lidar com as cicatrizes do passado. Atingido por essas recordações
angustiantes, disse em tom mais ameno, com lágrimas nos olhos:
—Cale-se. Não fale mais nada. Deixe-me morrer em paz. Ao perceber que havia tocado
numa ferida profunda, o homem que o questionava diminuiu também o tom de voz.
— Eu respeito a sua dor e não posso elaborar nenhuma tese sobre ela. Sua dor é única, e é
a única que você consegue realmente sentir. Ela te pertence e a mais ninguém.
Essas palavras iluminaram os pensamentos do homem quase em prantos. Ele entendeu que
ninguém pode julgar a dor dos outros. Compreendeu que a dor de seu pai era única e, portanto,
não poderia ser sentida ou avaliada por mais ninguém a não ser por ele mesmo. Sempre condenara
veementemente seu pai, mas começou a vê-lo, pela primeira vez, com outros olhos. Nesse
instante, para sua surpresa, o intruso lhe teceu algumas palavras que era difícil dizer se eram
elogios ou críticas:
— Para mim, você é também um ser humano corajoso, pois tenciona esmagar seu corpo
em troca de uma longa noite de sono no claustro de um túmulo! É, sem dúvida, uma bela ilusão —
e interrompeu seu discurso, para que o suicida se desse conta das conseqüências imprevisíveis do
seu ato.
Mais uma vez, o homem deprimido interrogou-se sobre aquela estranha figura que havia
surgido para atrapalhar seus planos. Que homem era esse? Que palavras! Uma noite de sono
eterno no claustro de um túmulo... essa idéia lhe causava repugnância. Porém, insistindo em levar
seu projeto adiante, rebateu:
— Não vejo motivo para continuar esta merda de vida! — resmungou veementemente, e
franziu a testa, atormentado pelas idéias que vinham sem pedir licença. O forasteiro calibrou a
potente voz e o confrontou energicamente:
— Merda de vida? Mas que ingratidão! Seu coração, nesse instante, deve estar querendo
rasgar seu tórax e protestar com lágrimas de sangue o extermínio da vida! — e, com rara
eloqüência, mudou o timbre, tentando traduzir a voz do coração do suicida: — ”Não! Não! Tenha
compaixão de mim! Eu bombeei seu sangue incansavelmente, milhões de vezes. Supri suas
necessidades... fui seu servo sem reclamar. E agora você quer me calar, sem nem me dar direito de
defesa? Ora... eu fui o mais fiel dos escravos. E qual é o meu prêmio? Qual a minha recompensa?
Uma morte estúpida! Você quer interromper minha pulsação só para estancar seu sofrimento. Ah!
Mas que tremendo egoísta você é! Quem me dera eu lhe pudesse bombear coragem! Enfrente a
vida, seu egocêntrico!” — e, instigando o suicida, pediu que ele prestasse atenção no peito para
perceber o desespero do seu coração.
O homem sentiu a camisa vibrar. Não notara que seu coração estava quase a explodir.
Parecia que, de fato, estava gritando dentro do peito. O suicida arrefeceu. Ficou impressionado
com o impacto da fala daquele estranho em seus pensamentos. Mas, quando parecia derrotado,
mostrou o pouco da determinação que lhe restava.
— Já me sentenciei a morte. Não há esperança.
O maltrapilho, então, lhe deu o golpe derradeiro:
— Você já se sentenciou? Você sabia que o suicídio é a condenação mais injusta? Porque
quem se mata executa contra si mesmo uma sentença fatal sem ao menos se dar o direito de
defesa. Por que se auto-condena sem se defender? Por que não se dá o direito de argumentar com
seus fantasmas, encarar suas perdas e lutar contra suas idéias pessimistas? É mais fácil dizer que
não vale a pena viver... Você é realmente injusto consigo mesmo!
O estranho demonstrava saber com maestria que os que tiram a própria vida, ainda que
planejem sua morte, não têm consciência das dimensões do fim da existência. Sabia que, se
vissem o desespero dos íntimos e as conseqüências indecifráveis do suicídio, voltariam atrás e se
defenderiam. Sabia que nenhuma carta ou bilhete poderia ser atestado de defesa. O homem do
topo do Edifício San Pablo havia deixado uma mensagem para seu único filho, tentando explicar o
inexplicável.
Ele também já tinha comentado com seus psiquiatras e psicólogos sobre suas idéias de
suicídio. Fora analisado, interpretado, diagnosticado, e ouvira muitas teses sobre suas deficiências
metabólicas cerebrais, bem como fora encorajado a superar seus conflitos e ver seus problemas
sob diversos ângulos. Mas nada tocava aquele rígido intelectual. Nenhuma dessas intervenções ou
explicações o retirou do seu atoleiro emocional.
O homem era inacessível. Mas estava pela primeira vez atordoado por aquela pessoa
estranha que o interpelava no topo do edifício. A julgar pelas vestes e pela aparência humilde,
tratava-se de um miserável que pedia esmolas. Contudo, as idéias e o discurso deixavam entrever
um especialista em abalar mentes impenetráveis. Suas palavras geravam mais inquietação do que
tranqüilidade. Parece que sabia que sem inquietação não há questionamento, e que sem
questionamento não se encontram alternativas, não se abre o leque de possibilidades. A ansiedade
do suicida aumentou tato que ele acabou por decidir fazer ao forasteiro uma pergunta; resistira
muito a fazê-la, pois havia presumido, pelos primeiros embates, que entraria num campo minado.
E entrou.
— Quem é você?
O suicida ansiava por uma resposta curta e clara, mas ela não veio. Em vez disso, mais
uma rajada de indagações.
— Quem sou eu? Como você ousa perguntar quem eu sou se não sabe quem você é? Quem
é você, que procura na morte silenciar sua existência diante de uma platéia assombrada?
Tentando desdenhar do homem que o interpelava, o suicida retrucou com certo sarcasmo:
— Eu? Quem eu sou? Sou um homem que em poucos momentos deixará de existir. E já
não saberei quem sou e o que fui.
— Pois eu sou diferente de você. Porque você parou de procurar a si mesmo. Tornou-se
um deus. Enquanto eu diariamente me pergunto: ”Quem sou?”. - E mostrando astúcia, fez outra
pergunta: — E quer saber qual é a resposta que encontrei?
O suicida, constrangido, meneou a cabeça, dizendo que sim. O forasteiro prosseguiu:
— Eu lhe respondo se primeiramente me responder. De que fonte filosófica, religiosa ou
científica você bebeu para defender a tese de que a morte é o fim da existência? Somos átomos
vivos que se desintegram para nunca mais resgatar a sua estrutura? Somos apenas um cérebro
organizado ou temos uma psique que coexiste com o cérebro e transcende seus limites? Que
mortal o sabe? Você sabe? Que religioso pode defender seu pensamento se não usar o elemento da
fé? Que neurocientista pode defender seus argumentos se não usar o fenômeno da especulação?
Que ateu ou agnóstico pode defender suas idéias sem margem de insegurança e sem distorções?
O forasteiro parecia ter conhecido e ampliado o método socrático. Fazia intermináveis
indagações. O suicida ficou atordoado com essa explosão de perguntas. Era um ateu, mas
descobriu que seu ateísmo era uma fonte de especulação. Como muitos ”normais”, dissertava teses
sobre esses fenômenos com uma segurança insustentável, sem nunca debatê-las isentas de paixões
e tendências.
O homem de roupas rotas e semblante circunspeto dirigia sua máquina de perguntar
também a si mesmo. E, antes de receber qualquer resposta, definitiva ou provisória, de quem o
ouvia, deu um ultimato:
— Somos dois ignorantes. A diferença entre nós é que eu reconheço que sou.
Emocional
Enquanto grandes idéias eram debatidas no topo do edifício, algumas poucas pessoas da
multidão se afastavam sem saber o que estava acontecendo. Não suportavam esperar o desfecho
final da desgraça alheia. Mas a maioria permanecia firme; não queriam perder o desenrolar dos
fatos.
De repente, apareceu no meio do povo um homem curtido no uísque e na vodca, chamado
Bartolomeu. Era mais um ser humano com cicatrizes ocultas, embora fosse extremamente bem-
humorado e, em alguns momentos, petulante. Cabelos pretos desgrenhados, relativamente curtos,
que há semanas não viam pente nem provavelmente água. Tinha mais de trinta anos. Pele clara,
sobrancelhas exaltadas, rosto um pouco inchado, que escondia as cicatrizes da surrada existência.
Trançava as pernas ao andar, de tão bêbado que estava. Com a voz pastosa e a língua presa,
esbarrava em algumas pessoas e, em vez de agradecer pelo apoio, reclamava. Para uns, dizia:
— Ei, você me atropelou. N|o vê que estou na mão esquerda?
Para outros, falava:
— Dá licença, amigo, que estou com pressa. Bartolomeu deu alguns passos a mais e
tropeçou na sarjeta.
Para não se espatifar no chão, tentou se apoiar onde pôde, até que encontrou uma velhinha e
caiu por cima dela. A coitada quase quebrou a coluna. Tentando se desvencilhar dele, deu-lhe uma
bengalada na cabeça e gritou, assustada:
— Sai de cima, seu tarado!
Ele não tinha força para se deslocar. Vendo a velhinha gritar sem parar, para não ficar em
maus lençóis, gritou mais alto que ela.
— Socorro! Gente, me açode! Esta velhinha está me agarrando.
As pessoas próximas deslocaram os olhos do céu para a terra. Fitaram a reação do bêbado.
Percebendo sua astúcia, tiraram-no de cima da velhota, deram-lhe uns empurrões e disseram:
— Sai para lá, seu malandro.
Mas ele, não querendo sair por baixo, falou, todo atabalhoado:
— Obrigado, gente, por esse empu... empu... — Estava tão embriagado que ensaiou três
vezes falar a palavra ”empurrãozinho”. - Em seguida, tentou sacudir a poeira da calça e quase caiu
de novo:
— Vocês me salvaram dessa...
A velhinha estava de prontidão quando ele ameaçou caluniá-la. Levantou sem titubear a
bengala e preparou-se para desferi-la novamente em sua cabeça, mas o esperto corrigiu-se a
tempo.
— ... dessa senhora bonitona...
E deixou o campo de batalha. Começou a andar. Enquanto caminhava por entre a
aglomeração, perguntava-se, intrigado, por que todo mundo estava compenetrado, olhando para
cima. Achou que as pessoas estavam vendo um extraterrestre. Olhou para o alto do edifício com
dificuldade e, tumultuando mais uma vez o ambiente, começou a gritar:
— Estou vendo! Estou vendo o E.T. Cuidado, gente! Ele é amarelo e chifrudo. E tem uma
arma nas mãos!
Na realidade, Bartolomeu estava alucinando. Sua mente estava tão perturbada que
construía imagens irreais. Não era um alcoólatra comum, era um amotinador. Além de beber tudo
que estivesse à sua frente, era um especialista em chamar a atenção social. Por isso seu apelido era
Boquinha de Mel. Amava beber e amava mais ainda falar. Aliás, os amigos mais íntimos diziam
que tinha a SCF, a síndrome compulsiva de falar.
Ele agarrava as pessoas próximas, estimulando-as a ver o que só ele via. Elas tentavam se
soltar das mãos dele com safanões e xingamentos:
O bêbedo balbuciava:
— Que povo mal-educado! Só porque vi primeiro o E.T. eles morrem de inveja.
Enquanto isso, no topo do San Pablo, o homem que pensara em desistir da vida começou a
pensar que, na verdade, precisava exterminar era seu preconceito, pois estava repleto de idéias
vazias e conceitos superficiais sobre a vida e a morte. Exaltava a própria cultura, mas agora
precisava exaltar a própria ignorância — um comportamento improvável (e até doloroso) para
quem sempre se julgara um brilhante intelectual. Dentro do mundo acadêmico, ele parecia ter
vastos conhecimentos, que ostentava com tanto orgulho, mas nunca poucos minutos haviam sido
tão longos para fazê-lo enxergar a sua insensatez.
Sentiu que estava tomando uma ducha de serenidade. E essa ducha não parava de jorrar do
homem saturado de incógnitas e sem glamour social. Como se não bastasse o que havia argüido, o
forasteiro ampliou o bombardeamento. Fez um passeio pela história de um grande pensador:
— Por que Darwin, nos instantes finais de sua vida, quando sofria de intoleráveis náuseas e
vômitos, bradava ”Deus meu”? Era ele um fraco ao clamar por Deus diante do esgotamento de
suas forças? Era ele um covarde por se perturbar diante da dor e, ao se aproximar da morte,
considerá-la um fenômeno antinatural, embora a sua teoria se fundamentasse em processos
naturais da seleção das espécies? Por que ocorreu um grave conflito entre sua existência e sua
teoria? A morte é o fim ou o começo? Nela nos perdemos ou nos encontramos? Será que, quando
morremos, somos regurgitados da História como atores que nunca mais contracenam?
O suicida reagiu com espanto, engoliu saliva. Nunca havia pensado nessas questões.
Jamais refletira sobre a hipótese de que, de forma tão singela quanto um bebê que regurgita o leite
que o amamentou, ele, ao querer morrer, estaria regurgitando sua história da História. Embora
fosse partidário da teoria da evolução, desconhecia o homem Darwin e seus conflitos. Mas será
que Darwin havia sido incoerente e frágil? Não... não podia ser. ”Darwin não desistiu de viver. Ele
certamente se apaixonou pela vida muito mais do que eu”, pensou.
A sensação que tinha era de que o homem das questões inumeráveis lhe tirara a roupa da
soberba sem pedir permissão. Enquanto o coração se acalmava, procurou recuperar o fôlego, como
se pegasse carona no ar que aspirava para percorrer áreas de sua mente jamais percorridas.
Respondeu com franqueza:
— Não, não sei. Jamais pensei nessas questões.
E o forasteiro emendou:
— Trabalhamos, compramos, vendemos e construímos relações sociais; discorremos sobre
política, economia e ciências, mas no fundo somos meninos brincando no teatro da existência, sem
poder alcançar sua complexidade. Escrevemos milhões de livros e os armazenamos em imensas
bibliotecas, mas somos apenas crianças. Não sabemos quase nada sobre o que somos. Somos
bilhões de meninos que, por décadas a fio, brincam neste deslumbrante planeta.
O suicida diminuiu a respiração. Começou a resgatar sua história e sua identidade. Júlio
César Lambert — esse era o seu nome — era portador de raciocínio arguto, rápido, privilegiado.
Em sua promissora carreira acadêmica, quando defendera suas teses de mestrado e doutorado,
obtivera notas máximas com louvor. Também havia participado de muitas bancas como avaliador
de trabalhos alheios. Perturbava mestrandos e doutorandos com suas críticas ácidas. Sempre fora
um ególatra, e sua expectativa era a de que os outros gravitassem na órbita da sua inteligência.
Agora, no entanto, participava de uma banca cujo avaliador era um maltrapilho. Sentia-se uma
criança indefesa diante dos próprios medos e da própria falta de sabedoria. Mas, pela primeira vez,
foi chamado de menino, e não se contorceu de raiva, pela primeira vez teve prazer em reconhecer
sua pequenez. Já não se sentia um homem diante do próprio fim; via-se como um ser humano em
reconstrução.