In tro d u ç ã o 1. A linguagem Falantes de qualquer língua fazem reflexões sobre o uso e a forma da lingua- gem que utilizam. Estes falantes são capazes de fazer observações quanto ao “so- taque” e às “palavras diferentes” utilizadas por um outro falante. Qual o falante que não se lembra de ter um dia discutido o “jeito diferente de falar” de uma pessoa que seja de uma outra região geográfica? Pode-se também determinar se o falante é estrangeiro e muitas vezes precisar o país de origem daquele falante. Qualquer indivíduo pode “falar sobre” a linguagem e discutir aspectos relaciona- dos às propriedades das línguas que conhece. Isto faz parte do “conhecimento comum” das pessoas. Contudo, há um ramo da ciência cujo objeto de estudo é a linguagem. A lingüística é a ciência que investiga os fenômenos relacionados à lingua- gem e que busca determinar os princípios e as características que regulam as es- truturas das línguas'. Nas próximas páginas apresentamos ao leitor os principais termos técnicos da lingüística que são adotados neste livro. Pretendemos também indicar o objeto de estudo da lingüística e apontar áreas de trabalho que necessi- tam de profissionais com conhecimentos lingüísticos, especialmente nas áreas de fonética e fonologia. Sabemos que falar uma determinada língua implica um conhecimento que certamente transcende o, escopo puramente lingüístico. Quando duas pessoas fa- lantes de uma mesma língua se encontram e passam a interagir lingüisticamente, certamente se dá uma interação ampla em que cada um a das pessoas envolvidas passa a criar uma imagem da outra pessoa. Podemos identificar se a pessoa é falan- te nativo daquela língua.*Um falante nativo é um indivíduo que aprendeu aquela língua desde criança e a tem como língua materna ou primeira língua. Caso classi- fiquemos o falante como sendo nativo, podemos afirmar se tal pessoa partilha da mesma variante regional daquela língua. Não precisamos nem mesmo ver um falan- te para determinar a sua idade ou sexo, e talvez seu grau de educação. Isto pode ser facilmente atestado quando atendemos a um telefonema. Podemos também precisar se o falante é um estrangeiro que tem a língua em questão como segunda língua^Na grande maioria dos casos, falantes de uma segunda língua têm características de sua língua materna transpostas para a língua aprendida posteriormentéT Tem-se portanto o “sotaque de estrangeiro” com características particulares de línguas específicas (como “sotaque” de americano, japonês, alemão, italiano, etc.).
Para procedermos à análise de uma língua devemos delimitar a variante a ser investigada. Idealmente devemos definir parâmetros linguísticos e não-lingüísticos, buscando constituir uma comunidade de fala homogênea. Uma comunidade de fala consiste de um grupo de falantes que compartilham de um conjunto específi- co de princípios subjacentes ao comportamento lingüístico. Após definir-se a co- munidade de fala a ser analisada passa-se, então, à coleta de dados que irão formar o corpus. O corpus fornece o material lingüístico a ser analisado. Figueiredo (1994) discute aspectos interessantes relacionados à coleta de dados e à seleção de infor- mantes. Falantes de qualquer língua prestigiam ou marginalizam certas variantes regi- onais (ou pelo menos não as discriminam), a partir da maneira pela qual as seqüências sonoras são pronunciadas. Assim, determinamos variantes de prestígio e varian- tes estigmatizadas. Algumas variantes podem ser consideradas neutras do ponto de vista de prestígio. Temos em qualquer língua as chamadas variantes padrão e variantes não-padrüo. Os princípios que regulam as propriedades das variantes padrão e não-padrão geralmente extrapolam critérios puramente lingüísticos. Na maioria das vezes o que se determina como sendo uma variante padrão relaciona-se à classe social de prestígio e a um grau relativamente alto de educação formal dos falantes. Variantes não-padrão geralmente desviam-se destes parâmetros. Vale dizer que as características das variantes padrão e não-padrão nem sem- pre relacionam-se ao que é previsto pela gramática tradicional como correto. No português de Belo Horizonte, por exemplo, a terminação “-ndo” das formas de gerúndio é pronunciada como “-no”: “comeno, fazeno, quereno, dançano, vendeno, etc”. Note que a redução de “-ndo” para “-no” ocorre somente nas formas de gerúndio. A forma verbal “(eu) vendo” não permite a redução de “-ndo” para “-no”, e uma sentença como “*Eu veno banana” não ocorre. Fazemos uso do asterisco antes de um determinado exemplo - como no caso de “*Eu veno bana- na” - com o objetivo de explicitar que tal exemplo é excluído ou não ocorre. Este recurso é adotado ao longo deste livro. Vale ressaltar que a redução de “-ndo” para “-no” nas formas de gerúndio em Belo H orizonteje em outras regiões do país) desvra-se do esperado como padrão. Contudo, sendo o fenômeno amplamente difundido entre os falantes, temos que a redução de gerúndio faz parte da variante padrão em Belo Horizonte. Um exemplo de variante não-padrão pode ser ilustrado com as formas ver- bais de primeira pessoa do plural. Em vários dialetos do português brasileiro tem- se duas formas pronominais para a primeira pessoa do plural: “nós” e “a gente”. Cada uma destas formas requer uma forma verbal distinta: “nós gostamos” e “a gente gosta”.'A m bas as formas são aceitas como parte da variante padrão em vários dialetos. O que caracteriza a variante não-padrão é a troca de formas de pessoa com a forma verbal: “nós gosta” e “a gente gostamos’*. Há ainda casos de lexicalização. Simplificando podemos dizer que o léxico consiste de um conjunto de itens lexicais e de suas respectivas propriedades rele vantes para a organização da gramática. Falantes do português têm, por exemplo, uma entrada lexical como “planeta”, cujas propriedades listadas podem ser: subs- tantivo, masculino. Cada palavra é associada a uma entrada lexical. No caso da palavra “planeta” todos os falantes têm a mesma entrada lexical e as mesmas propriedades específicas: substantivo, masculino. Há contudo exemplos como “guaraná” ou “telefonema” que não apresentam a mesma entrada lexical para todos os falantes. Para alguns falantes há a especificação de que estas palavras são masculinas - “o guaraná, o telefonema” - e para outros falantes há a especificação de que estas palavras são femininas - “a guaraná, a telefonem a”. Dizemos neste caso que para as palavras “guaraná, telefonem a” o gênero é especificado lexicalm ente podendo ter duas alternativas possíveis: masculino ou feminino. Não há um a opção melhor-pior ou certa-errada. Dizemos que a lexicalização deste item para os falantes determ ina a forma a ser adotada. No caso de “guaraná, telefonem a” temos que a mesma entrada lexical tem propriedades específicas diferentes. Há um outro caso de lexicalização que envolve palavras que têm a entrada lexical diferente e as mesmas propriedades específicas. Para alguns falantes as formas “vassoura, assovio” são substantivos sendo “vassoura” feminino e “assovio” masculino. Para outros falantes as formas “vassoura, assovio” não existem. As formas correspondentes com o mesmo significado e as mesmas propriedades es- pecíficas são: “bassoura, assobio”. Estas formas são substantivos sendo “bassoura” feminino e “assobio” masculino. Pode ser que um falante tenha as entradas lexicais “vassoura” e “assobio”. O falante faz uso da forma registrada em seu léxico. Fi- nalmente, há casos de uma palavra apresentar duas formas lexicalizadas diferen- tes para o mesmo falante. Um exemplo é a palavra “ruim ” que para inúmeros falantes do português pode ser pronunciada como “ruim” ~ “ruim” (o símbolo ~ indica a alternância entre formas). * Podem os concluir que não há variante m elhor ou pior de um a língua. Há variantes de prestígio, estigm atizadas ou neutras. Para definir as propriedades a serem adotadas em sua variedade pessoal um falante conta com várias fontes de inform ação lingüística e não-lingüística de outros falantes. M esmo que a seleção não se dê conscientem ente, definem -se opções e caracterizam -se assim as particularidades da fala de um indivíduo: ou seja um idioleto. O que é inte- ressante é que em bora todo e qualquer indivíduo tenha características específi- cas em sua fala, há um a enorme porção com partilhada com os outros indiví- duos e definem -se assim os dialetos ou variantes de uma língua. Considerem os a seguir algumas variantes não-lingüísticas que deixam marcas na organização lingüística. A fala do homem e da mulher por exemplo se faz marcar na organização lingüística. Temos variantes de sexo (masculino ou feminino). No português mineiro observamos que o uso do diminutivo é recorrente na fala feminina: “Olha que gracinha aquele vestidinho amarelinho!” Parece difícil imaginar um homem dizendo o mesmo enunciado. Geralmente, na fala masculina observa-se com me- nos frequência o uso do diminutivo. No caso do português, quando ocorre a vari- ante de sexo, esta é expressa em termos de freqüência de uso. Não há em portugu- ês marcas gramaticais, palavras específicas ou padrões de entoação que sejam somente utilizados por falantes de um único sexo. Contudo, isto ocorre em algu- mas línguas. O japonês pode ser tomado como exemplo. A língua japonesa apre- senta as variantes masculina, feminina e neutra. Um exemplo que marca a dife- rença gramatical entre estas três variantes de sexo é o uso da partícula que segue um substantivo: na fala masculina é “da”; na fala feminina é “yo” e na fala neutra é “desu yo”. Várias outras marcas de sexo podem ser observadas em japonês. Contamos também com variantes etárias. Note que pessoas mais idosas, por exemplo, são mais propensas a pronunciar o r final das formas de infinitivo dos verbos (cf. “cantar”), ou os s plurais de substantivos (“os m eninos”). Jovens tendem a omitir estes sons nestes contextos (cf. “cantá” e “os menino”). Qualquer pessoa está ciente de variantes formais e variantes informais dc sua língua. Estas variantes são estilísticas. Claro que namorar ou brincar com os filhos envolve o uso de uma variante diferente daquela utilizada em um encontro formal em uma entrevista de emprego ou numa Corte de Justiça. Fazer uso da linguagem certamente leva-nos a compartilhar de princípios sociais e linguísticos. Estes princípios são determinados sem nenhum encontro específico dos falantes para tal finalidade ou de uma lei ou decreto criados especi- ficamente para este fim. Entretanto, tais princípios são compartilhados pela co- munidade em questão e são parte do universo dinâmico e passíveis de mudanças a cada instante. Certamente, a intuição de falante nativo contribui para a seleção da variante a ser usada em cada contexto. Em outras palavras sabemos o que falar, para quem, como, quando e onde. Portanto, ao empreendermos uma análise linguística devemos considerar parâmetros linguísticos e não-lingüísticos. Dentre os fatores não-lingüísticos res- saltamos: região geográfica, faixa etária, gênero (masculino, feminino, neutro), estilo (formal, não-formal), grau de instrução, classe social. F arem os uso do term o variante p ara c a rac te rizar as p ro p ried ad es linguísticas compartilhadas por um grupo específico de falantes. Temos, assim, variantes etárias, variantes de sexo, variantes geográficas (como por exemplo a variante de Belo Horiz.onte), etc. O termo dialeto é também utilizado como sinônimo de variante. Ao referirmos à fala específica de um indivíduo adotamos o termo idioleto. As propriedades particulares da fala de um indivíduo caracte- rizam seu idioleto. Gostaríamos de ressaltar que toda e qualquer variante de uma língua é ade- quada lingüisticamente e é inapropriado dizer que há variantes piores ou melho- res. Sugerimos que o leitor faça o exercício abaixo com o objetivo de refletir sobre a sua variedade lingüística pessoal.